terça-feira, 30 de dezembro de 2008

conto do amor ao fim


De longe, era mesmo uma casa abandonada. Tudo meio arruinado. Rangendo, sem audição. Morava um casal que era tão apaixonado, que, dizia a velha, um não comia sem o outro chegar. O moço era pescador, saía todo dia cedo, antes da manhã levantar. Aí, se tomava café e o resto todo esperava a hora dele voltar. Às vezes, durava até a noite. Ela dizia que não sentia fome. Nem água quase não bebia. Eu pensava que só podia ser saudade a pessoa passar o dia todo sem comer nada. Viveram bem uns cinco anos. Foi numa das primeiras madrugadas de março. O moço saiu para pescar. Dizem que o tempo não estava ruim, nem bom. Deus sabe lá, se emendou uma madrugada na outra e nada do moço chegar. A Rita, que já era magra, agüentou bem uns quatro dias sem comer. Depois, caiu doente. Deram-lhe muita papa e folha. Ela saiu da cama e ele ainda não tinha voltado. O povo todo dava mesmo o moço como morto. Nem ele, nem o barco. Viram ele na maré de longe. Só tinha mesmo a roupa do corpo. E do mais, todo mundo sabia que ele gostava mesmo era dela. Mas, a Rita não contou conversa. Quanto mais diziam a ela para rezar o corpo, mas ela praguejava ele. E falava tão mal, tão mal, que parecia falar de outro. Dizia mesmo que homem era tudo igual, que ele tinha era arranjado outra, tinha largado ela por uma rapariga qualquer. Bendizia não ter dele nenhum filho para carregar o desgosto. O povo chegou a achar que ela estivesse doida ou então que os dois já não eram tão comungados quanto parecia. Mas, quando perguntavam se ele já não gostava dela, ela ficava era mais aborrecida. Dizia que homem sempre gosta de quem lhe põe a mesa e forra a cama. Era de espantar a tamanha desvergonha com que ela contava a humilhação. Porque mulher nenhuma acha bom ser trocada. Mas, a Rita não se importava em falar e repetia tanto, que a vizinhança chegou mesmo a acreditar nela e resolveu parar de rezar o defunto. Daí, a Rita ficou uns três meses. Ninguém nunca viu ela chorar. E, numa manhã, como a dele, ela arrumou uma trouxa e saiu antes do sol. Disse ela a uma vizinha que não ficava na casa mais não. Que não queria está nela para ver ele voltar. Era bom que ele quietasse no lugar onde estava. Nisso, já se vão muitos anos. A casa já está velha. Era tão bonitinha. Bem certo, que com esse tempo, o moço não voltou. Disseram depois que tinha uns pedaços do barco pelo mar. Mas, não se sabe, com aquela história toda da Rita. Ela bem que sumiu no mundo. Ninguém tem notícia. Mas eu torço mesmo para ela estar certa, viu? Ela devia era saber. É melhor o amor acabar, que o moço morrer.

domingo, 28 de dezembro de 2008

Feliz Ano Novo

Ano Velho já vai embora.
Toda vez, levo ele até a beira da estrada. É chão.
Bagagem ele quase não leva.
Diz sempre para eu entregar ao que vier quase tudo que ele juntou.
A despedida, para não doer, é combinada.
Vamos até a praia. Eu mergulho e ele se afasta.
Já vai distante, quando olho de novo a areia.
Lá, ele deixa um embrulho descolorido.
Eu nem preciso abrir para saber o que tem dentro.
É clichê. Termina sempre da mesma forma.
Um dia, diz ele, que foge, antes do fim, a me levar.
Eu na areia molhada lembro isso.
Balanço a cabeça, com uma lágrima e um sorriso.

sábado, 27 de dezembro de 2008

matando carrapatos


Para me lembrar que é um cachorro, Albert de vez em quando adquire uns carrapatos. Eu odeio. Sempre penso "Nunca mais crio cachorro na vida". Engulo o meu nojo e repulsa para enfentar os parasitas com frieza. Desta vez, um novo remédio, segundo o vendedor, um tratamento de choque para a hora do banho. Lendo a bula, encontro um "ATENÇÃO: CÃES DE PEQUENO PORTE PODEM APRESENTAR DEPRESSÃO ACENTUADA POUCAS HORAS APÓS A APLICAÇÃO."
- Hein?!
Olho para Albert em tom irônico e cruel:
- Você gosta deles, é?

A palavra cala

Não sou palavra nenhuma. Palavra é tudo que se enche ou se esvazia por meros significados. Não vale os segundos de audição. Não dura o tempo da fala. Não se compromete com a escrita.

Delas, pode-se escutar qualquer coisa. Não dizem nada. Nem sobre mim. Nem a você.

As palavras só servem para nos calar.

sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Ser artista nem sempre vale a pena.
O que sempre vale a pena é conviver com a arte.
Se a arte não lhe serviu como ofício, deixe-a lhe servir como alma.
tenho paixão pelo acordar.
por tudo quando desperta.
o dia, a noite, o vento.
tudo que levanta e se põe de pé.
de pé em pé até se deitar.

Fim de Festa

O Natal passou.
Queria um post sobre o amor, mas ele não veio.


Anoiteceu, o sino gemeu
E a gente ficou feliz a rezar
Papai Noel, vê se você tem
A felicidade pra você me dar

Eu pensei que todo mundo
Fosse filho de Papai Noel
E assim felicidade
Eu pensei que fosse uma
Brincadeira de papel

Já faz tempo que eu pedi
Mas o meu Papai Noel não vem
Com certeza já morreu
Ou então felicidade
É brinquedo que não tem.

Boas Festas - Assis Valente (
1932)

Alguém me disse que eu não era generosa


A minha generosidade é utópica. Talvez não sirva nem a mim, nem aos outros. Talvez nem se chame generosidade. Seja apenas aceitação. O certo é que toda generosidade prática me parece ultrapassada. Acho até que esta generosidade só tem a ver com previdência. Minha visão de futuro tem sido cada vez mais escassa. Disto não se salvam as relações. Não confio no tempo. Ele me tomou muita gente. Por ele, fui deixando de esperar os retornos. E, ainda que quisesse, não poderia ignorar a sensação de que não envelhecerei até a hora da colheita. O tempo só me confirma. Talvez eu morra jovem.

quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

Instinto de Natal

Dei um presente de Natal para o meu cachorro. Um alter de borracha. Ele parecia se divertir, mordendo animadamente o barulho do brinquedo. Quando deitei, ele ainda estava muito entretido. Dormi satisfeita. Só pela manhã, vi os pedaços pelo chão do quarto. Parece que não durou nem uma hora.

- Meu Deus, Albert, quando você vai aprender a ter cuidado?!

quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

Ao Meu Amigo Imaginário: Feliz Natal!


Há algum tempo, um estranho persegue a minha mente. Um dia, o vi passar. No outro, ouvi sua voz. Certa vez, ele estava na minha frente na fila do supermercado. Observei-o atentamente. Neste dia, descobri seu nome. Descobri onde morava. Passamos meses sempre nos vendo pela rua. Às vezes, em lugares inesperados.

No começo deste mês, dada à insistência do destino, resolvemos nos aproximar. Não houve uma apresentação oficial. Apenas um "Olá. Tudo bem?!" Foi engraçado. Daí em diante, sempre trocamos algumas frases, corriqueiras, divertidas e triviais. Assim, vamos nos acostumando um ao outro. Teve um dia que quis contar uma coisa para ele. Na verdade, já tinha pensando outras vezes. Só que naquele dia, teria contado, se o tivesse visto. Cheguei a caminhar pela rua, mas nada.

De umas semanas para cá, quando vejo uma coisa, penso nele. Sempre penso nele. Ele é um estranho. Outro dia parei para analisar. Desde que o conheci, fiz várias coisas por causa dele. Eu nem sabia. Ele é um estranho. Outro dia, ele tinha um livro na mão. Procurei na internet. Li um artigo sobre o livro. Li o livro. Não gostei muito. Queria ter dito a ele. Vai ver ele também nem gostou. Fiquei uns quatro dias sem vê-lo. Fiquei triste. Quando a gente se encontrou, ele fez uma cara do tipo "você sumiu". Eu ri meia hora. Quando cheguei em casa, escrevi mais um texto para o blog. Ele nem sabe que eu escrevo.

Ontem, saí rapidinho para comprar umas coisas. Mal pensei nele. O vi quando dobrei a esquina. Ele estava do outro lado da pista e atravessou para falar comigo. Fiquei um pouco nervosa porque normalmente a gente não pára quando é assim na rua. Ele explicou tudo: "Oi. Então, Paula, Feliz Natal!". Claro. O natal. Eu nem gosto que me chamem de Paula, mas, coitadinho, ele ainda nem sabe disso. "Sim. Para você também. E Feliz Ano Novo!". "Não. A gente ainda se vê antes do Ano Novo". É? Sorri um "Quem sabe". Ficou no ar o tempo de um abraço. Mas, era demais. Afinal, ele é um estranho. Quando me afastei um pouco, ele disse mais alto "Olha, ano que vem a gente se conhece". Ri uma hora. Óbvio. Ele não é um estranho. Na próxima, darei a ele um abraço de Feliz Ano Novo!

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

meu pé direito

Sentada escrevendo, muito concentrada, derrubei um copo. Quase não me assustei. Nem me incomodei com o vidro no chão. Somente na hora que senti o sangue escorrer entre os meus dedos, parei para perceber os cacos.

a história da menina que escolheu.


Quando uma pessoa escolhe, a outra é obrigada a escolher. A escolha não é um direito. É mesmo um dever, que a maior parte das pessoas finge não cumprir para não carregar o peso da responsabilidade. Em uma das minhas escolhas recentes, decidi não fazer favores para ninguém. Não falo de favores práticos, como pegar uma coisa, fazer algo, uma gentileza. Não. Falo dos favores implícitos na vida cotidiana, aqueles que nem sempre te pedem, mas que entram na sua escolha. Acontece quando você escolhe fazer algo por um motivo que não é exatamente seu. Fiquei mais egoísta depois desta escolha. Confesso. No entanto, tenho acreditado no poder de transformação do egoísmo temporário. Acho mesmo que um tempo de egoísmo pode trazer novo significo a um sujeito. Por enquanto, com esta escolha, vou fazendo história. Afinal, quando uma pessoa escolhe, a outra é obrigada a escolher. Quando a outra escolhe, a pessoa é obrigada a escolher novamente.
Medo é um mal necessário. Por segurança, quando não o tiver, finja.

gata e rato

Corro atrás de ratos. Eles sempre ganham. Eu sempre corro quando os vejo. Não sei porquê. A perseguição nem me faz tão bem. Ainda penso em estratégias. Eles usam sempre a mesma. O que eles têm me ganha. Há quem diga que eles são até bonitinhos, mas pra mim são mesmo duvidosos. Opa! Acho que vi um ratinho...

domingo, 21 de dezembro de 2008

Eu apago. Eu acendo.
Nem quero nada a mais.
Não quero a preocupação de alguém.
Permita-me a escuridão que nenhum olho me enxergue à noite.
No dia, há muito, a minha alma é despercebida.
Que assim fique.
E eu possa me guardar no céu que ninguém cerca como meu.
E não brilhe. Nunca. Nem por brincadeira. Nem por covardia.
Estou a me apagar. Devagar. Pela inspiração.
Vão ficando, sem cor, no chão, os meus ciscos.
Não me despeço. Não os preciso.
Já preciso de tão pouco. Ou de tanto.
É certo que não me importo.
Faço tudo pelo sentir.
Sentir me basta. Sentir me cansa.
É brilho quente. Precioso e inútil.
Só dele me apago. Só dele me acendo.
E é inútil. Servirá para nada. Servirá somente sentir.
Enquanto durar as paciências.
Eu acendo. Eu apago.
E todos os olhos me perdem de vista.
Uma coisa que sempre me entristece é ciúme. Ciúme não faz bem a ninguém. Eu evito. Quase nunca sinto. Quase nunca permito que sintam por mim. Não me serve, nem envaidece.

Além do mais, eu nunca achei que ciúme pudesse aproximar as pessoas. Para mim, sempre foi motivo de renúncia. Sintoma de desatenção.

sábado, 20 de dezembro de 2008

Ego

O que me afasta dela, sou eu mesma.
Eu como sou agora.
É insuportável.
Não me aceito fora de mim.
Não suporto me ver em outra.
Um pé no chão e um pé virado para cima.
Olhos atentos, fixos um ponto à frente.
Permanece e vai mais longe.









leio. procuro-me. nenhuma frase, nem uma palavra. não me escreve. não fala de mim.

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Queda

Tão jovem. Sentou-se arriscadamente na balaustrada.

Enquanto, de longe, eu pensei em dizer. Um acidente. Um espanto. Todo mundo falava muito alto. Na festa. Quando ele caiu.

Acho que foram quinze ou vinte. Segundos de nada a fazer. Desejei que fosse o trigésimo andar. Desejei que ele fosse um anjo. Ainda mais leve. Desejei que o mundo acabasse. Antes da hora.

Tudo seria milagre.

Ele. Tão só. Abraçado ao solo. Irremediavelmente.

Não falem. Não questionem. Não. Nada faz. Não há sentido.

Um susto. Um sonho. Ainda bem. Foi sonho.

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Com açúcar, com afeto

Descobri uma coisa.
Gosto de estar ao teu lado. Sem perguntas, sem respostas. É tudo.
A despreocupação em saber é de infinita beleza. Intensa. Singela.

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

alguém esteve lá

Tem um lugar em mim que sempre faz silêncio. Às vezes, ele me interrompe. Eu paro para ouvi-lo. Parece desabitado e, no entanto, há alguma coisa diferente. Tenho a impressão de que, quando ele me chama a atenção, é porque alguém passou por lá. Eu nunca vejo em tempo. Quando eu chego, seja lá quem tenha sido, já se foi. Eu só encontro o silêncio. Escuto. Canso. Retorno. Sempre pensando que não descobri nada.

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Não sei e o tempo passa.
Calmo, calmo.
Azul ou verde piscina. Tanto faz.
Estou deixando tudo para entender mais tarde.

ouvi com sabedoria ou uma analista amiga minha



"Para ser feliz, você não precisa ser a pessoa dos seus sonhos.
Basta estar um pouquinho perto dela."


corpo vida

eu gosto da sabedoria do corpo físico.
eu não devia separar, mas o corpo é infinitamente verdadeiro.
Um dia, ainda viva, eu serei só corpo e o mundo, verdade.

o corpo é a concretude do espírito.
Ele é tudo e, às vezes, não o entendo.

Nem sempre a gente sabe.
Mas, a gente vive para praticar o corpo.
Até completar um ciclo.
O espírito é um eterno aprendiz.
De quando em quando, o corpo o ensina.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

somos triviais. eu e você. somos. devemos conviver assim. vamos parar de brigar, vamos parar de brigar, vamos parar de brigar. com a nossa história.

A história só serve para nortear as mudanças.

***

não somos triviais. eu e você. não somos. não devemos conviver assim. não vamos parar de brigar, não vamos parar de brigar, não vamos parar de brigar. com a nossa história.

A história só serve para nortear não mudanças.

***

somos triviais. eu e você. não somos. devemos conviver assim. vamos parar de brigar, não vamos parar de brigar, vamos parar de brigar. com a nossa história.

A história nos servirá para quê?


Dica para começar bem a semana:



"Algumas pessoas são mais interessantes de longe. Preserve-as."


domingo, 14 de dezembro de 2008

Como os domingos acabam?

A paixão do domingo.
A agonia do domingo.
Ouvem-se seus últimos suspiros.
Chega o anjo.
O domingo sopra:
- Leve-me embora.
O anjo responde:
- Calma, meu caro domingo, aproveita, ainda lhe restam 4 minutos!


***

Os domingos vão para o céu ou para o inferno?


e agora os meus olhos querem chorar quase todo tempo
vendo o que é feio e o que é belo
eles se emocionam mais que eu.

o meu corpo tem vida própria
misteriosa e desobediente.
todo sentimento esvaece
triste, triste, triste...
quero uma besteira para comer
e nem posso.
passa rio. passa nuvem. passa.


(juro que um dia paro de escrever coisas infantis. insisto em sobreviver a minha infância.)

superficial

Para que me descobrir? Eu fico tão bem debaixo deste cobertor.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

a senhora ao lado

- Mulher apaixonada não presta, minha filha. Fica burra.
- E homem, não?
- Homem? Homem nem se apaixona. Quando muito, gosta um bocadinho de você.

Ouvi de uma moça velha


A dificuldade de se comunicar com um adolescente é que, enquanto ele não ouve o que você fala, você já não compreende o que ele quer dizer.

As crianças não. Elas entendem tudo. E, na maior parte das vezes, não aceitam. As crianças são muito revolucionárias. Mas a gente nunca dá ouvidos a elas.

O ser humano vai estragando à medida que cresce.

ao que é vivo, tenho amor espontâneo. um olho, um zelo. é da vontade ver o vivo se mexendo. e, em sentimento, ainda que não atenda, amo tudo que tem vontade. amo ele, outros e outras que cabem nos inesgotáveis círculos.

do amor, tenho apenas o sentimento. me parece simples de cultivar. sincero fruto da relação abnegada. por vezes, nem recíproca.

o amor não dói. o que dói é outra coisa.

ao amor permissível. quanto mais eu tenho, maior me sinto.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

insetos despertam a minha agressividade.
Odeio insetos. os que fazem barulho. os que voam.
os coloridos. os cor de folha seca. os verdes.
Odeio insetos. eles insistem muito.
gostam tanto de doce quanto eu.
roubam-me as flores.

conjugar

flor da hora antes da colheita
cor em cheiro, cheiro em cor
é de si o mais intenso perfume

eu exalo tu exalas ele exala nós...

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Ontem

Ri de você várias vezes, dia.
É novo e ingênuo.
Tão inseguro de si. Nem se vê passar.
Não é desdém, nem digo, saudade.
É verbo no tempo do ia.
Estado de quem já não sabe mais.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Inspiração

Terminei um livro que me acresceu vários centímetros. Não sei quantos e presumo-os imperceptíveis aos olhos. Na verdade, senti pelo dilatar dos meus pulmões, respirando a leitura. Era tanto ar, tanto ar, que, para não sufocar, fui-me expandindo por dentro.

Ao final, suspirei fundo. Um suspiro úmido, cuja duração contemplou a infinita beleza que a individualidade tem ao se compreender
maior.

MAUGHAM, W. Somerset. O fio da Navalha.
Tradução Lígia Junqueira Smith. São Paulo: Globo, 2002.
- E então, menina, o que você vai querer ser quando crescer?
- Livre!

Apego


Aceitei a minha dificuldade em desvencilhar-me das coisas. Esforço inútil ou comedido demais. Quando quero o sim ou o não, repito. Repito, repito, repito... Repetir é atuar.

Sou feita de reservas. Com elas, espero as visitas do tempo. Quando ele chega, beijo-lhe a mão. Ele me olha, acomoda-se e fala-me com discernimento.

domingo, 7 de dezembro de 2008

Juízo perfeito



Há que se controlar as paixões.
Com o tempo, invariavelmente, elas ficam ridículas.



"Em negócios às vezes a esperteza dá bom resultado, mas na arte a sinceridade é, não somente a melhor política,
mas a única."

O fio da Navalha
-
W. Somerset Maugham

sábado, 6 de dezembro de 2008

tempo da delicadeza

Há quem precise estar dopado. Ontem, compreendi. É descanso, paciência, tempo dilatado. A lenta sensação interna de estar bem, uma impressão de poder fazer tudo e, talvez o mais impressionante, o querer não urgente. É como lembrar e esquecer as próprias vontades, adormecer os sentidos e a sensibilidade. Pode ser reconfortante tanto quanto um lençol branco limpo, que na manhã seguinte acorda mal passado.


Amo os meus desejos. Quero tê-los.
Mesmo inconstantes, mesmo sussurados.
Embora, na maioria das vezes, sofra-os ansiosamente,
com a minha demasiada pressa.


Todo o sentimento - Cristóvão Bastos e Chico Buarque/1987

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

O Anjo Exterminador

Eu assisti há uns cinco anos.
Não teria memória para contar o enredo.
Não lembro o nome de nenhum ator.
Não lembro o rosto de nenhuma personagem.
E, no entanto, as imagens aparecem re-construídas.
O que traz à memória, r
oda, vira, mexe:
Buñuel, as personagens, as minhas portas abertas e a famosa barreira invisível.

- ...

- Sim, Diretor, compreendo, mas não poderíamos aproveitar para fazer logo a outra tomada da cena anterior, enquanto o rebanho de cordeiros não fica pronto para filmar?

- ...

- Ok, estou pronta.

- ...

- Ah, desculpa, me esqueci de tirar... Agora, vou: do início sem a máscara!

- Ok. Gravando!

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Na farmácia: o que não tem remédio.

Na segunda-feira, acordei me sentindo mais magra. Achei estranho, afinal segunda-feira o mundo inteiro acorda naturalmente mais gordo. Descrente, deixei para lá. No entanto ontem, olhando-me no espelho, novamente tive a boa impressão. Surpresa com a possível peripécia involuntária, eu, profunda conhecedora do meu próprio peso, pensei em ir tirar a prova em uma farmácia. Coincidência ou não, precisei comprar um remédio no início da noite. Fui.

Farmácia. Antes de tudo, a balança. Coloco-me a espera, com a paciência típica de quem sabe que já ganhou. À minha frente, num tempo bem particular, uma menina de mais ou menos 19 anos, sobe descalça como se reverenciasse um oráculo. Em alguns segundos, ela comemora a consulta:

- Gente! Emagreci três quilos comendo de tudo! - Fala alto, sem pensar.

Silenciosamente, meu primeiro impulso: "Mentira!". Logo depois: "Quem sabe". Visivelmente mais leve, ela desce da balança rapidamente. Eu, tomando parte da minha vida, subo. Desço sem falar, mas lanço um olhar irônico à balança: "Da próxima vez, antes de subir, lhe faço uma mesura".

Dialética. "Não, eu não estava pensando em emagrecer. Não, eu não fiz nada para isso. Sim, eu achei pouco ter perdido pouco mais de um quilo, mesmo sem fazer esforço". Tentando conscientizar a minha pretensão, dirijo-me ao balcão e peço um antiinflamatório. Chega rapidinho e não é caro. Quase feliz, vou ao caixa.

Pequena fila e, quem vejo à minha frente?, a menina. Passo o olho em sua cesta: tintura de cabelo, hidratante e várias caixas de chá verde. De saquinho! Fico impressionada. Na fila, uma amiga mais alta, mais loira e magra, que eu não tinha visto até então, lhe faz companhia.

- Odeio chá verde!
- Eu não vivo sem, viciei. E realmente, acho que emagrece.
- Respondeu a menina, ainda gordinha, com feliz sinceridade.
- Aff! Não sei como agüenta, não tomo nem aqueles de supermercado...
- Ah: Me pesei, perdi três quilos!
- Animação de quem emagreceu 30.
- Foi?
- E comendo de tudo! Juro que não passei fome hora nenhuma esta semana.
- Mas eu te disse que você estava mais magra. Pensei até que tivesse perdido mais... O ruim destas dietas de reeducação alimentar é a continuidade. A primeira semana é ótima, porque a pessoa vem comendo de tudo livremente, aí, o mínimo que corta, já faz a diferença. Mas, da terceira em diante complica: mesmo seguindo tudo certinho, os resultados demoram muito. Priscila mesmo não agüentou, disse que passou várias semanas sem emagrecer nada...


A menina não teve tempo de raciocinar. Interrompendo a fala da loira, a caixa sorridente disse apenas "Boa noite!" e ela, ainda segura com a nova silhueta, foi pagar a compra. Logo atrás, eu era uma interrogação bege:

- Meu Deus, esta loira está com medo de quê?

mormaceira

Finge tão bem que não pode dar um passo, que chego a esquecer que tem pernas. Só me lembro que as tem, quando lhe vejo usando-as para fugir.

Ou se quer ou não se quer.

a morte aumenta a espera

era o branco da espera
era o negro do ciúme
nenhuma cor lhe vestiu na hora da briga
foi nu, feito bicho, desperdiçar a força

era o vermelho do sangue
era o barro da terra
nenhuma cor lhe cobriu a mancha
foi o fim, feito juiz, sentar-se entre a gente

a desistência não teve cor
tampouco se viu por perto a cor dela
fora a presença da própria sombra a lembrar-lhe a infância
a criança, no tempo da pausa, o fizera corar

por pouco não fora o suspiro a chamar a morte
mas não se sabe como, nem porquê
enquanto um sonhou, o outro se fez livre
sendo, o céu, vivo fim de tarde.


terça-feira, 2 de dezembro de 2008

poucas frases

Vaidade significa qualidade do que é vão.

As nossas suposições só servem a nós mesmos.

Costumo me dobrar ao que quero.

A mínima grosseria ainda me deprime.

Ansiedade nunca foi meio de locomoção.

Precisar de alguém, para mim, é motivo de orgulho.

Um "não" não me basta.

Os sensíveis costumam ser inteligentes.

A nossa natureza é o que nos obriga.

As pessoas que dão a outra face,
dão-a em benefício próprio.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008