terça-feira, 30 de março de 2010

madrugar


eu gosto de madrugada. ao invés de barulhos, sons. é a hora em que quase tudo rui sozinho. aqui na rua, tem um tic-tac que não sei de onde vem. já tentei achá-lo da janela. já perguntei ao porteiro... é como uma ampulheta virada no início da noite para contar os segundos da madrugada. de manhã, já não se ouve. o tic-tac já tem gosto de chegar em casa. e, talvez dele, eu até já goste, quando sento no chão da sala, com minha caneca preta, cheia de café e gasto falsos cigarros. isto seria um bem maior, se dormir tarde não me fizesse tanto mal. eu estou dormindo pouco. há muito, era assim: sono em quatro, cinco horas. minhas olheiras não deixam de me lembrar. mas, hoje, já não fico bem. tenho sono nas horas mais arrastadas do dia. é sinal de que não se pode voltar ao passado impune, mas... madrugada é puro fascínio. é como se Deus lhe desse um pequeno dia para gastar consigo mesmo. uma outra chance. e eu a gasto, despretensiosa, imaginativa e pura, sob a brisa da grande janela descortinada. eu nunca temi os olhos da madrugada, sempre me pareceram benevolentes. há, ou apenas penso: deve haver uma espécie de cumplicidade entre os que não dormem. saber a verdade não me importa. a mim, todo esse tempo, mais valeu a crença.

segunda-feira, 29 de março de 2010

se fosse para dizer:


não sou mais verdade. sou ora cansaço, ora medo; ora medo e cansaço. como muito do mundo, nos dois morri apenas deixando-me levar até. nem um sinal. nenhum. e janelas abertas para a mentira. esconderijos. sou mesmo de construir apegos. mas demoro. para coloca-los de pé, para derruba-los. demoro. tanto tempo sem me despedir de nada. no fundo, eu não gosto de ir embora. e não gosto que ninguém se vá.

sexta-feira, 26 de março de 2010


domingo passado, eu assisti "Os Amantes da Ponte Neuf", de Leos Caraix. no início do filme, uma das personagens esfrega a testa contra o asfalto. no tempo em que durou, a cena foi suficiente para me torturar. ralar a própria testa no asfalto é insuportável até mesmo para quem apenas vê. eu admiro a poesia do cinema, a força de sua poética. uma imagem, talvez com menos de 30 segundos, tornou o insuportável totalmente inteligível.

insuportável. não sucumbir nesta palavra ajuda a manter a testa longe do chão.

quando eu sinto aquela cena, eu recuo. repenso. o que eu não posso suportar?

Com Juliette Binoche. Imperdível.

quarta-feira, 24 de março de 2010

ouvindo sonhos...

***

brincando com o sorriso dele, que em sonho me apareceu. eu dizia: nunca mais... ele dizia: mas faz pouco tempo. e me falava do tempo dele, tão distante do meu, tão longe de mim. ficamos bem juntos, assim por horas, falando em tempos. era o nosso último encontro.
mas ele não. sorrindo jurava: não vai haver fim.

***

ai, sim. lembrei-me da saudade.

segunda-feira, 22 de março de 2010

dona


abandona escorrendo aquele lugar
mente - refúgio do corpo interrupção.
já espalha ao vento
cheiro e feminino hormônio,
transpira e dança renascente nova madrugada
em festa de ser sim, dona, singular
fica no céu negro-claro antes do sol
claro-negro mistério, água quente diferente sal.

há tantas horas queima
quem vai, quem chama
já era paz ou nunca fora.
amor combustível
somente em matéria encontra descanso
descubra e outra vez seja
água, depois do fogo
ao invés de cinza, grande onda.

sexta-feira, 12 de março de 2010

mal-me-quer


na janela, uma nuvem de fumaça.
game over. é fim de brincadeira.

eu que quis...
ele que quis...
eu que quis...
ele que quis...
eu que quis...
ele que quis...

embaça os olhos. só fumaça, engasgo.
perdi na conta. esqueci-me de quem na última pétala.

***

Amor perfeito
Amor quase perfeito
Amor de perdição paixão que cobre
Todo o meu pobre peito pela vida afora
Vou-me embora, embromadora
Você para mim agora
Passa como jogadora
Sem graça nem surpresa
Diga que perdi a cabeça
Seu eu me levantar da mesa e partir
Antes do final do jogo
Louco seria prosseguir essa partida
Peça falsa que se enraíza
E faz negro todo meu desejo pela vida afora
Vou-me embora, embromadora
E quando eu saltar de banda
E quanto eu saltar de lado
Vou desabar seu castelo de cartas marcadas
E tramas variadas
Sim
Seu castelo de baralho vai se desmanchar
Desmantelado
Decifrado
Sobre o borralho da sarjeta
Chegou o inverno

Dona do Castelo - Adriana Calcanhotto

quinta-feira, 11 de março de 2010


estica o umbigo, o querer arrebentar. e fui eu, mulher, que gerei este rebento. antes, não tivesse aberto as pernas para o desejo. assim, ele nunca teria me visto vã engravidar e parir esse menino. criança futuro que, dor à luz nossa, a cada dia nasce mais morta.



um dia inteiro pelos ares

assim sustento na dança

em canto de talvez

geminiano coração


pobre entorpecido

que cumpre parvo

sob encanto de tal vez

a vaga pena da solidão


***

domingo, 7 de março de 2010

chuva


dilúvio caindo. eu, encantada, olhando a chuva alimentar o mar. vento, respingos, clarões, trovões. uma chuva inteira, eu absorvida. bahia afogada, eu em palafita protegida. como é bela a chuva para os que sentem ao lado sol. é descanso. descansei. caminhei meia hora, ou mais, sob sol aprumado de uma da tarde. entrei com ele pelo domingo até derramar-se a chuva redenção. posso adivinhar a hora em que a primeira gota beijou o mar, mas nesta mesma hora já tinha eu os olhos fechados da entrega. ventura. adivinho teu nome, ainda futuro desconhecido. somos dois em sonho do quase possível simplesmente estar e, assim, vamos em frente. nos conhecer. quem sou eu, quem és tu, quem é março, seu primeiro domingo e novas águas. assim por todos os dias e todas noites. assim como a chuva começa. assim por onde ela desejar passar.

Amar


Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer, amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?
Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?
Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o áspero,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho,
e uma ave de rapina.
Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor à procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.
Amar a nossa falta mesma de amor,
e na secura nossa, amar a água implícita,
e o beijo tácito, e a sede infinita.

Carlos Drummond de Andrade

terça-feira, 2 de março de 2010

o tempo como navalha. o fio, um fio de qualquer coisa que corta. um vento, uma pessoa que passa. uma amiga distância que te vê tão bem. e você? fora. como uma vida fora. como arde, como queima, como geme, uma vida jogada fora do lugar.