domingo, 12 de abril de 2009

conto de páscoa: paixão e ressurreição


hoje à tarde, enquanto lia sentada no chão do quarto, reparei nela deitada ao meio da minha cama. ela dormia em paz como tem feito todas as noites desde janeiro, rendendo-se, pouco vestida e despreocupada, como uma criança ao sono calmo. linda. a via dormir e gelei quando, repentinamente, as lágrimas tomaram o meu rosto. foi acordar. de manhã, ela riu da minha indigestão, saindo do meu corpo como se nunca mais eu fosse prestar. ela dorme agarrada a mim. sobre as minhas costas, impede o mundo de me tocar. possessiva, dominadora, ciumenta. eu achava que não ia tolerar, mas acostumei a passar os dias me explicando, totalmente refém de sua feminilidade.

saí do quarto para não acordá-la. chorei alto por trinta minutos. às vezes, ela é boa quando me vê chorar, mas normalmente não é de dar consolo. fica muito impaciente. eu também, costumo chorar por tudo. e ela enlouquece, grita "você não tem nenhum senso prático" e bate a porta. eu sei. estive completamente apaixonada por ela nos últimos quatro meses. a gente se aproximou devagar, pelo meio do ano passado, mas mal nos tocamos e ela arranjou um jeito de mudar lá pra casa. eu aceitei, claro. ela me parecia tão linda.

mas aí, na quinta-feira, ela me fez uma grosseria. sei lá, ela sempre foi meio grossa mesmo. é da natureza dela. eu nunca gostei, achava até pior que o ciúme, mas gente é gente e, quase sem muito esforço, eu conseguia relevar. quinta foi estranho. tive vontade de gritar também. desejei que ela não tivesse ali, que fosse dormir em outro lugar. acho que se algum dia sentisse isso, ela me diria. mas eu, sempre fui apaixonada... não tive coragem. dormimos caladas, separadas na mesma cama. sonhei com um avião caindo. acordei cedo, o quarto estava claro e eu não sentia calor. nos últimos dias, estava acordando suada. ainda deitada - ela dormia - olhei a janela. a sexta-feira da paixão amanhecia chovendo.

fui almoçar com a minha mãe. ela foi comigo.

sábado, ela saiu de manhã bem cedo. eu acordei assustada, quando sonolenta virei e abracei o travesseiro dela. silêncio. levantei rápido e tinha um bilhete na porta da geladeira. “só volto à noite. vê se não vai se matar sem mim, hein?” ri, senso de humor ela sempre teve. fiquei em casa até o meio da tarde. deu fome, fui comer no shopping. passei no mercado para comprar café, não tinha pó em casa desde que descobri o refluxo. trouxe um ovo de páscoa. dez horas, pedi uma pizza família.

uma da manhã, ela abriu a porta e eu dei um grito no sofá. quando a reconheci era tarde, já me tremia toda. “porque você não foi dormir na cama, hein? vem cá, você comeu essa pizza toda sozinha? não acredito! você vai passar mal. porque você não tirou da mesa? será possível? e se eu não viesse? agora, EU tenho que guardar tudo...”. ela emendava uma frase na outra, mas não estava nem um pouco descontrolada. reclamando, me pegou no sofá e me levou para cama.

eu acordei péssima. gorda, com a pizza família viva dentro de mim. ela levantou das minhas costas e foi para a cozinha. quase morrendo, eu desejei saber vomitar. de lá, ela gritou “vem cá, quem tem gastrite pode comer pizza?” continuou “e se forem só oito fatias?” ela começou a rir. sentou na cama e, abrindo a embalagem, perguntou “você comprou para mim, não foi? eu não vou dividir com você. você não pode comer chocolate”.

melhorei no fim da manhã. fui para o computador, trabalhei umas três horas e, já de tarde, li alguns artigos na internet. peguei um romance e sentei no chão do quarto. tinha mais ou menos uma hora que ela estava dormindo.

quando voltei, ela tinha ligado a TV. não tinha como disfarçar meu olho inchado:

- foi este livro?
- o último conto. já está no final.
- quer que eu termine com você?
- não. deixa que depois eu termino.
- sozinha você vai chorar mais.
- acho que não. sei lá, parece que já acabou.
- então vem cá. cuidar de mim.
- mas sou eu que estou com o olho inchado...
- e daí? você fica procurando essas histórias.
- eu gosto de literatura.
- eu gosto de literatura, mas prefiro a minha própria vida.
- eu sei.
- e aí? vai viver comigo?
- tem outro jeito?
- eu posso ir embora.
- dúvido que resolva alguma coisa.
- o que resolve, então? é incrível como você não tem nenhum senso prático.
- eu sei. um dia, mudo.
- por mim, você já pode mudar. eu não tenho medo. veja: o que é vivo vai morrer e o que é vivo e não muda vai morrer do mesmo jeito.

Um comentário:

Monique Monteiro disse...

Bonito. Bonita escrita. Por instantes pensei que "ela" fosse a gastrite. =)