sábado, 14 de novembro de 2009

Via Crucis


hoje, odiei a mim mesma. e isto não foi uma expressão retórica. senti um ódio profundo, agudo e crescente, que não me lembro de ter sentido por ninguém. primeiro, eu odiei os meus pés a ponto de desejar não tê-los. e como se isto fosse tão condenável: desejar não ter pés e, ao mesmo tempo, tão sincero, desejei não ter perna. nenhuma das duas. e odiei calmamente cada uma de suas partes, até os joelhos e as coxas. e por não ser sufuciente, prossegui. odiando. os meus quadris, o meu ventre, o meu sexo, os meus seios, detestando-os em seus mínimos detalhes. por longos minutos. e, ainda assim, foi pouco. então, odiei minhas unhas, uma por uma e, por não mais suportá-las, odiei os dedos, as mãos, que como os pés, num crescente de sensações parecidas, quis de nascença não tê-las. ter sido sempre, desde de muito pequena, sem mãos. um bebê, sem mãos. uma criança, sem mãos. uma menina, sem mãos. uma moça, sem mãos. uma mulher, sem mãos. e, neste momento, não era possível mais deixar de odiar. era como se apenas assim eu soubesse. e, em frações de segundos, odiei meus ombros, braços, antebraços e pescoço numa espécie de ódio que já não necessitava de tempo para se justificar. avancei para odiar o que o meu eu - no fundo de minha alma, sufocado e diminuído - teve esperança de conseguir o meu ódio parar. comecei a odiar o meu rosto num movimento terno. primeiro, o seu contorno largo, de ossos marcados. depois, a minha boca e os traços que em minha face, ela delineia em expressões de fala e outros sentidos. odiei os meus dentes e de modo muito especial, por que eles, lá atrás, em anos passados, eu tive mesmo que aprender a amar. e pensando nisso, me apareceu por fora, um meio sorriso, que me fez lembrar todos os outros; mas por naquele instante um sorriso meu não ter para mim nenhuma importância, desprezei-lhe todas as motivações e ele me pareceu um pouco desconsiderável para se odiar. assim, segui. odiando. o meu nariz, orelhas, olhos, cílios, sobrancelhas e testa. os sinais e a pele. no momento em que ia começar a odiar os meus cabelos, em nada eles me pareceram especiais e odiá-los foi para mim inaceitavelmente pouco. fui além. quis vingar-me de cada fio comum do meu corpo. e assim o meu ódio ascendeu à crueldade. e eu quis estragar os fios e, por através deles não ser capaz de sentir dor, quis arrancados, um a um e aos montes, até que viesse com eles pedaços da minha cabeça e destas feridas começassem a escorrer outros fios, calmos, de sangue. esta imagem abriu-me uma pequena brecha de liberdade. e, como um bicho com fome e desespero, eu lhe escancarei a passagem, imaginando uma lâmina muito fina a cortar-me delicadamente a face que odiei com ternura. esta lâmina, a mim, fez todos os tipos de perversidade até que cansada, ensanguentada e dormente, vinguei-me e desfaleci com o corpo quase tão morto quanto a minha alma.

vendo a minha alma morta, esta tarde, odiei a mim. presa por possui um corpo vivo. e nada além que me interessasse a partir dele viver.

Um comentário:

Raiça Bomfim disse...

Preta, que texto maravilhoso. Este, o de cima. Um falando-me de agora, outro dos tempos que eu passava o dia aflita com a memória do "Grande Hotel" e o fantasma da morte rondando-me o amor e a promessa. Tem sido fantástico ler-te nestes dias, neste momento.

Agradecida,

Rai.