- Ó, não quero te assustar, não. Eu só quero um trocadinho pra comprar um café... Ó, eu vou ficar aqui até tarde...
A cara, a cor, o sexo, a idade, a escolaridade, a roupa, a identidade, nada disto merece uma única descrição. Eu me incomodo, sinto vergonha. Só posso me esforçar para dar o meu olhar, que de fato não serve para nada, a esta pessoa. Seja velho, moço, criança, homem ou mulher, eu que não tenho o direito de pedir-lhes nada, peço: desculpas ou apenas penso em pedir e minutos depois esqueço isto com a mesma sinceridade com que lembrei. Falar disto é um clichê, pura demagogia, até para mim que não sou candidata nas próximas eleições. Hoje, tive a impressão que esta é mais uma mentira inventada para que nos importemos menos. O que não deixa de ser um clichê tranqüilizante.
Já que apenas especialistas e estatísticas podem falar de pobreza, vou falar de vida. De vida, ainda é possível falar e fica até bonito. No entanto, ao tentar falar da vida que me pediu um café ontem à noite, constato que chamam de pobreza a vida de milhões de pessoas no mundo todo. São eles sim, os pobres, de tão pobres, miseráveis. A parcela da sociedade sem solução até para os mais otimistas. Eles que estarão lá até a próxima campanha, até a próxima chacina, até a próxima encarnação, até a próxima. Eles que estão sempre lá, na próxima esquina.
Melhor, ou simplesmente, possível ver a pobreza através das manchetes, das fotos jornalísticas, das matérias de TV, do cinema, da música, do teatro. No fim, tudo nestes filtros ganha status de arte e a arte não é vida. Como se não soubesse, fico espantada. Hoje, com tantas denominações, pouca coisa é considerada vida. A pobreza, dentro ou fora da arte, por exemplo, não é vida. Naturalmente, a pobreza é um mal da sociedade capitalista e não uma pessoa. É também uma estratégia, com ela, lançam-se programas de governo e campanhas de solidariedade em toda parte; com ela, muitas pessoas conseguem, na saída do banco, encontrar um ser humano morrendo, não prestar socorro e não senti vergonha disto.
Eu não garanti o cafezinho daquele pedinte. Não tinha moedas à mão, fui obrigada a pagar contas no caixa eletrônico da agência às nove e meia da noite, correndo o risco de ser assaltada. Eu, que faço sempre tudo rapidinho pela internet; mas, que naquele dia, não tive este direito por um erro operacional do banco, onde escolhi ter uma conta. Eu odiei o Itaú por isto.
Ele, o pedinte, naquela mesma noite, ficaria ali até tarde, certamente até o fim de mais alguns anos. Enquanto isso, a sua pobreza vai vencendo os dias e as noites, tendo, para adormecer a barriga, o chão da entrada de uma das instituições mais ricas e poderosas do mundo. Ele possivelmente nunca odiou o Itaú ou qualquer outra instituição por isto. Provavelmente, só saiba odiar o que tem vida.
Daquela noite, felizmente, as fotos não estarão em nenhum informe publicitário. Assim, todos nós podemos pensar nelas, criá-las com vida, crueldade e sem nenhuma beleza, pelo menos, enquanto não transformarmos nosso pensamento em arte.
Um dia depois. Eu continuo vivendo. Escolhi fazer teatro, sou atriz. No meu país, a minha profissão e a minha arte não são valorizadas e, ainda assim, eu acordo todos os dias pensando nelas, pensando em servi-las. Isto não é um privilégio meu ou de artistas, outros profissionais sabem o seu papel e desejam desempenhá-los com seriedade. Ainda assim, as ruas continuam cheias de pessoas feias e mortas, incapazes de despertar a paixão de profissionais reconhecidos pela sociedade organizada. Eu, que para isto não espero uma resposta Divina, fico com vergonha e olhos marejados, a questionar.
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